quarta-feira, 9 de julho de 2025

A “Revolução” de 1964 na visão de um garoto delmirense

 

Texto de Eraldo Vilar e publicado originalmente em 03/12/2005, nas primeiras versões do blog.


A “Revolução” de 1964 na visão de um garoto delmirense

Hoje temos o excepcional e divertido texto do nosso colaborador Eraldo Vilar narrando o pantim (mais uma palavra do vocabulário delmirense) feito por alguns milicos nos primeiros dias do Golpe Militar de 1964.

Qual interesse estratégico tinha a nossa cidade no contexto nacional naqueles dias é um mistério para os historiadores? Será que o famoso Ouro de Moscou financiava algum aparelho comunista delmirense? Será que na pacata DG havia comedores de criancinhas? 


A  “Revolução” de 1964 na visão de um garoto delmirense
(Texto na íntegra do Eraldo Vilar) 


 

A famosa “revolução”, promovida pelos militares em 1964, marcou minha geração, pois seus efeitos foram prolongados, sendo o pano de fundo de parte da minha infância , adolescência e parte da minha vida adulta.

Embora tenha ainda comigo, lembranças nada boas deste período de “chumbo” da vida brasileira, lembranças estas associadas a colegas e professores da escola de geologia, na Bahia, perseguidos e presos (alguns torturados), guardo, entretanto, uma recordação engraçada deste período.

Tinha eu 10 anos de idade quando a “revolução” eclodiu, residia ainda em Delmiro e tomei conhecimento dela em um sábado, dia da famosa feira, que acontecia na cidade.

Estava, pela manhã, na loja de meu pai, na rua do Progresso, ajudando nas vendas que aos sábados eram intensas e exigiam reforço na equipe de vendedores, quando ouvimos grande alarido na rua. Pedi ao meu velho para ir ver o que estava acontecendo e dirigi-me ao início da feira, próximo ao açougue, onde fiscais da prefeitura normalmente colocavam cavaletes para impedir a passagem de veículos no meio da feira.

Lá chegando, deparei-me com aqueles veículos assustadores, enormes, verdes (tudo é grande demais quando somos pequenos, não é? rs) parados no meio da feira. Tratava-se de dois caminhões do exército , vindo do quartel de Paulo Afonso: um, com capota e bancos, estava cheio de soldados armados com fuzis com baionetas travadas, o outro tinha apenas carroceria, sem capota.

As fisionomias dos soldados (todos jovens, alguns delmirenses) estavam rígidas, sérias e assustavam. Os soldados desceram do caminhão e sob as ordens de alguns sargentos, começaram a se distribuir em pequenos grupos pelas ruas do centro, com ar ameaçador que fazia os pobres feirantes permanecerem em silêncio, assustados (eu comecei a pensar que voltar para a segura companhia de meu pai seria uma boa idéia..rs).

Na carroceria do caminhão sem capota, cujas grades laterais foram abaixadas, os soldados colocaram uma metralhadora de pé, de grosso calibre , daquelas que se vê filmes de guerra. Um enorme pente de munição foi colocada na abertura lateral da metralhadora e um soldado deitou-se em posição de tiro, apontando a mesma para os lados da feira. Esta ação fez o povaréu recuar e eu correr..rs. Mas, era apenas o soldado tomando posição. Aliás, uma posição estática mesmo!. O bravo combatente, imbuído de dever patriótico (rs) nem batia as pestanas. Sua expressão era a seguinte: olhar raivoso de águia, fixo, lábios cerrados, parecia uma estátua.

Pois é....e tome-lhe sol delmirense no capacete. Passado um tempo, o medo foi passando, e um monte de matuto (eu no meio) foi se acercando do caminhão, maravilhados com aquela cena, aquela arma gigantesca e ameaçadora.
A turma foi descontraindo, puxando seus cigarrinhos de palha brava, e diálogos do tipo eu pude ouvir:
-Pois é, cumpadi...que espingarda da peste, né? ¿
-É, cumpadi..ja pensou o estrago que a gente ia fazer nos mocós cum ela?  
-Eita cumpadi..ia esbagaçar, homi, isto é prá matá onça!¿....
-Mas que sordado bravo, né?...num mexe nem os beiços!  
-Pois é...será que ele guenta o sol muito tempo, cumpadi?
-Sei não, cumpadi..o coitadim vai derretê dibaixo do capacete...

E por aí iam as conversas, ao redor do caminhão.....
Hoje lembro destas coisas ... que coisa mais surrealista a “revolução de 64”
na nossa Macondo!...rs....queriam achar algum comunista lá?? Rsss

Ps: pelo sim pelo não, enterrei meu livros de capa vermelha no dia seguinte...rss

Ps: não tenho certeza porque não fiquei o tempo todo, mas eu soube que o soldadinho desmaiou de insolação....rss...alguém lembra e confirma?

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